Crônica urbana
A tragédia parecia ter atingido esse sujeito um milhão de vezes, mas nunca de uma forma tão terrível. Ele ainda se sentia confuso com tudo aquilo. Sentia-se mal por não conseguir demonstrar que realmente estava mal. Aproveitou que ninguém guardava aquela porta e resolveu arrombar. Os trinta e seis andares de escadaria custaram-lhe algumas pausas, quatro cigarros e dores nas pernas. A porta que levava ao terraço estava trancada com um cadeado. Ele teve bem mais trabalho para arrombá-la. Nem se preocupou com o estrondo que o cadeado fez quando estourou.
Fazia dias que estava com a mesma calça e sentiu um certo remorso por ver que seus cigarros estavam acabando. Sentou-se bem no centro do heliponto e acendeu mais um. Pensou em atrasar seus planos. Que mal teria em esperar o maço acabar para fazer o que tinha que fazer? O espigão de concreto e granito na Marginal Pinheiros dava uma visão privilegiada da cidade. Observou os carros passando pela pista expressa em alta velocidade por mais de uma hora. Foi quando acordou do estado catatônico e percebeu que chovia.
Já estava em seu terceiro cigarro desde que chegara ao terraço, e ainda não pensava em terminar aquilo. Passou a mão pelo bolso e sentiu a Taurus 9 mm que furtou do pai de um amigo. Observou toda aquela situação e por um momento teve certeza de ser apenas uma crônica urbana nas mãos de algum escritor incauto. O cigarro molhado pela chuva deixava um gosto estranho na boca. Debruçou-se e olhou para baixo. Quanto tempo alguém leva para chegar lá em baixo? Começou a rir da pergunta que se fez.
Verificou novamente o maço: ainda restavam quatro. "Só mais um", prometeu a si mesmo. Acendeu o cigarro e arremessou o isqueiro para longe. Demorou muito tempo para ouvir o estouro, trinta e seis andares abaixo. Em seguida xingou-se. E se tivesse vontade de fumar mais um antes de ir? Iria acender com o que? Ainda sentia-se apenas um personagem de uma crônica urbana, repleta de sensações verdadeiras em situações inverídicas.
Não teve vontade nem de terminar seu último cigarro. "Tá na hora!", pensou. Puxou a 9 milímetros e observou-a por um tempo. Em seguida caminhou para a porta que horas atrás havia arrombado e entrou. Deixou para trás a arma, um cigarro ainda aceso e uma mistura confusa de sentimentos horríveis. A tragédia parecia ter atingido esse sujeito um milhão de vezes, mas ele só conseguia pensar nos trinta e seis lances de escada que teria pela frente.
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