Uma noite alucinante
Já passava da uma da manhã de uma quarta feira quando o Reinaldo me abordou para saber se eu queria uma carona. Minhas últimas funções já estavam feitas, mas ainda assim hesitei em dizer sim. Quem sabe uma última ronda pelas agências internacionais de notícias fizesse a madrugada um pouco mais produtiva. Mesmo parecendo uma prudência necessária, resolvi aceitar. E daí, ninguém vai morrer agora. Rapidamente desliguei meu computador e parti com o fotógrafo falastrão.
A conversa no elevador enquanto descíamos os doze andares que nos separavam da rua foi banal. Reclamações corriqueiras sobre as injustiças da profissão de jornalista eram mais que comuns entre nós dois. O fato de Reinaldo estar carregado com seu equipamento fotográfico ainda me preocupou. Passaríamos por ruas muito escuras, e a região da Berrini em São Paulo é pródiga em assaltos.
Mal chegamos à esquina da Berrini, Reinaldo interrompeu a conversa com um sonoro “puta que pariu”. Logo senti o cheiro de maconha vindo em nossa direção. Para mim isso já era motivo mais que suficiente para que Reinaldo parasse subitamente na esquina, afinal ele era declaradamente um entusiasta da erva. O curto silêncio que ainda me confundia foi interrompido por ele quando disse:
- Caralho, roubaram meu carro! Estava ali na esquina, e não está mais lá. Levaram meu carro, porra!
Foi uma puta sacanagem, mas eu só consegui rir. A desgraça estava anunciada, mas à uma da manhã de uma quarta-feira isso é mais que motivo suficiente pra simplesmente rir. Atravessando a rua, cruzamos ainda com dois moleques da favela que fumavam a tal maconha que me surpreendeu na esquina. Um deles virou-se para nossa direção e sem pudor perguntou:
- Aí, vocês tão afim dum fumo? Tô com um preço bom!
- Tô de boa!
- Então me descola um cigarro pelo menos.
Provavelmente o pedido veio porque ele viu os últimos tragos que dava em meu Marlboro. Lembrei de um maço com dois cigarros que estava em meu bolso. Para não prolongar o papo joguei o pacote na direção dele que agarrou no ar e agradeceu a boa ação. Chegar a Rua Samuel Morse foi puro desespero inútil, afinal o carro não estava mais lá. Carregando no sotaque baiano, Reinaldo ainda desabafou:
- Eu voltei do Shopping Morumbi de táxi nesse minuto e ainda mostrei meu carro para o taxista. Não é possível. E agora, como vou fazer minhas correrias?
A agonia do baiano só aumentou quando ele lembrou-se que a chave de sua casa estava no cinzeiro do Fusca 83 branco que ele tratava como um filho. Sejamos justos, o carro era uma merda. Sempre deixou a gente na mão. Mesmo assim não demorou para decidirmos que o mais sensato seria fazer um boletim de ocorrência no 96º Distrito Policial que ficava na mesma avenida.
Voltamos à redação para que Reinaldo guardasse o valioso equipamento fotográfico: uma câmera Nikon D-2H, além de lentes originais que valeriam no mínimo uns R$ 10 mil. Reinaldo tratou de resolver seu problema de moradia e ligou para sua namorada pedindo abrigo. Com teto garantido, lá fomos Reinaldo e eu para a Delegacia.
Os 800 metros que nos separavam da polícia foram preenchidos com piadas sobre nossa desgraça e soluções imbecis para um problema real e alguns cigarros. Ficou combinado que após vencermos a burocracia policial tomaríamos um táxi para a Vila Mariana, já que a namorada de Reinaldo mora a uma quadra do meu prédio. O traslado com bandeira 2 seria gentilmente pago pela nossa empresa, através do boleto que Reinaldo espertamente mantinha na carteira.
Na delegacia ainda estranhamos o grande movimento. Pelo menos três viaturas da Polícia Militar descarregavam alguns procurados, pegos em flagrante. Má sorte, a noite prometia ser longa, muito longa.
Destoava daquele ambiente sórdido a bela escrivã chamada Ana Esperidião. Não daria para esquecer um nome desses. Loira e de mãos muito bem cuidadas, reluzia em seu anular esquerdo uma aliança dourada que denunciava claramente o estado civil da jovem de seu vinte e muitos anos. No pescoço, um pingente em forma de projétil parecia tentar inserir Ana no mundo polícia.
Enquanto Reinaldo tentava explicar para Ana a ocorrência, um investigador de plantão se interessou pelo caso e quis saber mais. Depois de ouvir nossa saga franziu a testa e revelou:
- Eu recebi um chamado desse pelo rádio. Falaram que tinham dois caras empurrando um Fusca branco. Eu fui até averiguar o caso, mas quando abordei o segurança de um puteiro que tem na Rua Arizona ele disse que viu o sujeito, mas que ele era da área.
- Esse segurança tá de sacanagem - disparei.
- Faz o seguinte: cola no segurança do puteiro e pergunta de novo. Se você desconfiar, chama a gente que eu vou de viatura com você lá pra gente debater essa fita. Meu nome é Marcos, eu sou investigador e vou estar de plantão aqui até de manhã.
Com o B.O. ainda quente na mão deixamos a delegacia e partimos para a segunda fase de nossa jornada: encontrar o tal segurança do puteiro. Confesso agora que um sexto sentido tomou conta de Reinaldo. Na hora pareceu a maior estupidez do mundo quando ele virou-se pra mim e disse:
- Meu carro está naquela favela. Tenho certeza que está lá. Vamos entrar na boca que a gente vai achar meu carro.
- Nem fodendo que eu vou entrar naquela boca às duas da manhã.
- Meu carro está lá velho. Tenho certeza. O ladrão teve que empurrar o Fusca porque ele não conseguiu desativar o segredo. Se a gente esperar a polícia eu nunca mais acho esse carro.
- Rei, a combinação Moikano e favela às duas da manhã não rola mesmo.
- Caralho, deixa de ser bicha. Você vai ter que segurar essa fita comigo.
- Puta que pariu. Baiano do caralho, se der merda você tá fodido.
Apesar da imbecilidade declarada da idéia, aceitei. E lá fomos nós para a terceira fase de nossa epopéia. Mal chegamos na boca fomos abordados por um dos seguranças e sua fiel companheira. Já não me lembro da fisionomia do sujeito, mas sua PT 380 cromada reluzia enquanto ele apontava para mim e para o Reinaldo a arma.
- Vocês tão perdidos, boy? Tão querendo o que aqui na minha quebrada?
- Você tem o que aí? - adiantou-se o baiano.
- Não tem porra nenhuma, agora dá área!
Não que o elemento tenha sido convincente em sua retórica, mas o .38 foi. E rapidamente demos meia volta e saímos por uma rua lateral que dava na Avenida Jornalista Roberto Marinho. Nosso andar apressado foi interrompido quando avistamos numas das quebradas da favela um Fusca branco. Apertamos os olhos quando o Reinaldo perguntou:
- Você consegue ver a placa?
- B-R-I 6288.
- Achamos meu carro Moikano! Vamos lá pegar.
- Nem fodendo, Rei. Se o ladrão estiver na área vai sapecar tiro na gente.
- E vamos largar o carro aí?
- Se ele ficou nessa quebrada até agora, não vai sair tão cedo.
- O que gente faz então?
- Vamos atrás duma viatura ou voltamos pra delegacia!
- Fica aqui de olho no carro que eu vou atrás da polícia.
- Você tá maluco, Rei. Fica você de olho nessa porra que eu vou atrás dos gambé.
- Nem por um cacete eu fico aqui sozinho.
-Então a gente deixa essa bosta de carro aí e vamos caçar uma barca.
Numa praça na antiga Avenida das Águas Espraiada encontramos diversos policiais militares. Três viaturas ao redor de uma base comunitária móvel faziam da praça um posto policial improvisado. A conversa entre nós dois e os policias bem que poderia ter saído de um filme.
- Acabamos de fazer um B.O. porque roubaram o Fusca dele.
- E daí?
- E daí que a gente deu uma volta a pé pela favela e encontramos o carro.
- Vocês têm merda na cabeça? - perguntou um sargento.
- Não, mas aquele carro é a minha vida - respondeu o baiano quase irritado
- Onde é que está?
- Numa viela aqui perto!
- Perto da boca de fumo?
- Do lado.
- Entra na viatura, vamos lá pegar esse carro!
Essa já seria a quarta etapa de nossa noite, e uma das mais empolgantes. O curto trajeto entre a praça e a favela teve direito a policias com armas para fora, sirenes a todo o vapor e derrapadas cinematográficas. É imbecil lembrar disso agora, mas fiquei impressionado como deve ser uma merda ser preso: o banco de trás é de plástico e deixou minha bunda doendo. E eu fiquei apenas cinco minutos lá. A chegada ao local não foi menos emocionante. A freada súbita das duas viaturas que se encaminharam ao local afugentou seis elementos que correram para dentro da favela.
Os policiais logo comunicaram o ocorrido pelo rádio e já saíram do carro de arma em punho. Um deles sacou uma escopeta e ficou de prontidão. Uma policial que também estava no local nos tirou do carro e nos posicionou numa área mais segura com área de escape protegida.
- Se tivermos algum problema fujam por essa rua.
Mal a Soldado Ramos terminou de dar suas instruções, nos assustamos com um estouro: um tiro disparado por algum bandido dentro da favela. Outros policiais tentaram nos tranqüilizar:
- É tiro pro alto que eles dão - explicou o sargento que momentos antes tinha ficado interessado na quatidade de matéria fecal que carregávamos na caixa craniana.
- Mas não se preocupem não, eu estou com a "punheteira" – disse outro soldado, referindo-se a sua escopeta e seu sugestivo sistema de engatilhamento.
Passados alguns minutos outra viatura reforçou o efetivo policial com mais dois soldados. Logo a situação se tranqüilizou e os tiros dos bandidos cessaram. Um policial ainda fez uma minuciosa averiguação, antes de nos escoltarem no Fusca de volta ao 96º DP.
O sorriso debochado de Ana Esperidião denunciava que a notícia já havia se espalhado. Pelo rádio nossos amigos da delegacia já sabiam de nossa epopéia e da milagrosa recuperação do Fusca 83 branco.
Fomos heróis naqueles minutos. Investigadores e escrivãos se aglomeravam e pediam detalhes de toda nossa operação amadora de busca e resgate. Os policiais militares envolvidos na operação também relataram os dados técnicos sobre a recepção hostil que tivemos.
As quase duas horas que se seguiram na delegacia para que fosse dada a baixa no caso de furto do Fusca voaram. Conversas sobre a rotina da madrugada na delegacia quebravam o marasmo entre um cigarro e outro. Logo estávamos nos despedindo de todos e indo para casa. De Fusca!
No mais, deixemos que os anos que virão preencham essa história com mentiras e inverdades. Por enquanto, os fatos narrados acima são reais e aconteceram na madrugada do dia 28 de abril de 2004. Ficaram duas lições: aquele Fusca era realmente uma merda e eu nunca mais vou entrar numa favela às duas da manhã.
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