Um tango
E se eu não tivesse medo de machucar a mão quebraria esse espelho agora. De vergonha. Apenas do que vejo e em nada do que sinto. Porque justo eu, pregador absoluto do realismo agreste, demorei tanto pra perceber que tudo, tudo se resume a arte. Não existe vida, nem sentimentos, nem destino. Tudo é parte de um roteiro minuciosamente elaborado. Somos a tela do pintor, o filme do fotógrafo. E ruimos como a melodia dos músicos.
E nossa vida inteira se faz em contos de fada, em romances, dramas e suspenses. E cada passo que dermos será sempre como os dedos de Chet Baker controlando os pistões de seu trompete. E cada sentimento que expressarmos será com a voz de Gardel. E cada palavra que dissermos será como a escrita de Shakespeare. As personagens vêm e vão. Vez ou outra retornam, assombram, acalmam, confortam. Mas tudo é arte e música. E é sempre igual.
Os mesmo olhos. O mesmo ônibus com os mesmo passageiros. Os mesmo passos. Não, as ruas são diferentes. Mas o cheiro e o gosto do ar permanecem iguais. Viramos os anos, a década, o século e o milênio. Mas não viramos a página. O gosto da noite é igual. E assim como a mesma chuva, é o mesmo amor, seja na tela, no filme ou na música. E nada de errado nisso. Nada!
Porque, seja em sonhos ou na pretensa e antiga realidade, ainda me parece fazer sentido que ninguém vive e morre mais que eu. Pois assim como o surdo ama a música, o féretro simplesmente celebra a vida.
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